Meus comentários: acredito que se conhecermos o passado teremos melhor condição de compreendermos o presente e corrigirmos as ações para o futuro desejado. O texto abaixo é o trecho de um trabalho de pesquisa acadêmica, portanto, sem nenhum tipo de sarcasmo ou paixonite denominacional. Isso o torna ainda mais rico permitindo chegar a várias respostas para um tanto de porquês sobre o evangelicalismo moderno. Os grifos são meus.
“O
relacionamento dos evangélicos com a ditadura militar não pode ser
descrito, simplesmente, pelo alinhamento e adesão, embora no
conjunto tenham predominado estas posturas. Como a
categoria evangélico abriga
diferentes tradições, esta pluralidade também se manifestou na
interface com o regime. Houve opositores conscientes, principalmente
a minoria ligada ao movimento ecumênico e aos debates teológicos
inspirados no pensamento europeu do após-guerra, bem como na
teologia latino-americana, cuja vertente mais conhecida era
a teologia
da libertação.
Não obstante, prevaleceu a influência poderosa da ideologia
conservadora- fundamentalista e anticomunista, conforme descreveu
Lyndon Santos:As
igrejas evangélicas passaram a receber um tipo de pregação mais
conservador e fundamentalista, oriundo das altas lideranças que
apoiavam o regime. O ambiente eclesiástico reproduziu o que a
sociedade vivia sob símbolos e discursos religiosos. Os evangélicos
tornaram-se mais intolerantes com relação às diferenças,
contradizendo sua herança de tolerância. Ser evangélico era
possuir uma ética pessoal exemplar, estar preocupado com o
comportamento e com a transmissão da experiência religiosa para os
“perdidos”.
A
“herança de tolerância” a que se refere Santos sempre esteve
mais na idealização do que na realidade das denominações. As
igrejas, que já antes não formavam cidadãos para os movimentos
sociais, embora nos anos 60 houvesse discursos de incentivo ao
engajamento em partidos e sindicatos, criaram um tipo de militância
religiosa interna, a fim de prender os fiéis ao sagrado, reduzindo
ao mínimo suas incursões no mundo social. Neste mesmo ambiente
interno, tradições eclesiais de democracia formal eram mantidas:
democracia direta, no caso das igrejas de organização
congregacional, e indireta, nas igrejas governadas por presbitérios
e similares. Estas práticas serviram, ainda que timidamente, para a
capacitação política de evangélicos que se lançaram na vida
pública, antes, durante e após o regime militar.
Santos
sintetiza, simbolicamente, em três espaços, a trajetória política
dos evangélicos, durante o regime militar: púlpito, praça e
palanque. Do púlpito se afirmava, nos anos 70, que “crente deve
votar no governo” e “crente não se mete em política”. A
ênfase estava colocada na obediência às autoridades, conforme
Romanos 13, e na frase de Jesus: “Dai, pois, a César o que é de
César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21), com a intenção
de separar as esferas do político e do religioso. Para Santos: “Se
quisermos encontrar alguns dos principais porta- vozes do regime
militar no espaço e no tempo cotidianos do período pós-64,
busquemos os milhares de pregadores dominicais”.E mais: “Não
somente as prédicas noturnas, mas o ensino regular e sistematizado
nas escolas dominicais e nos seminários teológicos, onde se
formavam lideranças eclesiásticas, foi um dos instrumentos de
reprodução de valores e idéias do regime”. O bipartidarismo
imposto pelos militares calhava bem na mentalidade maniqueísta da
maioria evangélica. Era fácil demonizar a oposição, agrupada no
MDB (Movimento Democrático Brasileiro), e associar a prática da
vontade divina aos que se organizavam na Arena (Aliança Renovadora
Nacional), braço do governo militar.
Os evangélicos podiam
ocupar a praça com desenvoltura, a fim de fazerem proselitismo,
porque seus discursos religiosos favoreciam ao regime, mesmo quando
não era esta a intenção. O uso de alto-falantes e a entrada em
cena de novas emissoras de rádio-difusão, com espaços de
programação para igrejas evangélicas, marcaram o período. Em
décadas seguintes, com a pentecostalização de parte do
protestantismo e o surgimento do neopentecostalismo, ocorreu o avanço
para a mídia televisiva. Este era um caminho de evolução
previsível. O uso destes meios poderosos de propaganda da fé
contribuiu para a popularização de líderes evangélicos,
facilitando o ingresso de alguns deles no campo
político-eleitoral.
(...)
Campos desenvolve dois
“tipos ideais” de políticos: os políticos
evangélicos e os políticos de Cristo.
Os primeiros inspiravam-se em idéias liberais dos norte-americanos e
não eram, a rigor, portadores de uma utopia transformadora da
sociedade. Estavam motivados por valores como liberdade de
consciência e separação Igreja e Estado, bandeiras cuja defesa era
necessária, por causa da influência muito forte da Igreja Católica
no espaço público apesar da condição laica da República. Esses
políticos, que surgiram principalmente a partir dos anos 1930, não
representavam projetos corporativos de suas igrejas. Eram resultantes
de iniciativas individuais e buscavam votos no público eva ngélico,
apenas por pertencerem a esse ambiente. De fato, havia resistências,
por parte das igrejas evangélicas, de se envolverem com política,
seja partidária, sindical ou nos movimentos sociais em geral. Campos
analisa as razões históricas e sociológicas dessa fuga às “coisas
do mundo”, fruto de uma “teologia cansada de guerra”, que veio
com a obra missionária norte-americana.
O outro tipo ideal,
proposto por Campos, é o “político de Cristo”, cuja prática,
“ao contrário da forma de atuar de muitos dos antigos ’políticos
evangélicos’, não passa pela valorização do sistema partidário,
nem pela defesa de ideologias políticas, propriamente ditas.”
A
atuação deste novo agente, que iria se consolidar a partir do
Congresso Constituinte de 1987-88, é pautada por demandas
corporativas da denominação. São os objetivos da igreja, a serem
alcançados no jogo de relações dentro dos aparelhos do Estado, que
irão determinar definição de candidatos, escolha de partidos e
estratégias eleitorais, para garantir a conquista da fatia desejada
de poder, geralmente nos parlamentos, embora também não esteja
descartada a disputa para cargos majoritários. Os candidatos podem
estar distribuídos em diferentes partidos, pois é feita uma
rigorosa análise das chances eleitorais, a partir de cálculos de
quociente eleitoral. Portanto, a questão não é ideológica. Como
destaca Campos:Os
partidos ou programas não [...] fazem diferença alguma [para os
candidatos], porque o essencial para eles é a manutenção do apoio
da Igreja que o elegeu. Sem essa Igreja, ele nada é; perde a função
de locutor, pois o discurso não lhe pertence; não passa de um mero
ator coadjuvante, que participa de uma dramaturgia que não dirige; e
recebe da instituição que o escolheu um script pronto para uma
atuação fundamentada na plena, total e irrestrita obediência às
autoridades religiosas. O “político de Cristo” é uma figura
vazada, que somente a instituição, as massas ou as circunstâncias,
podem preencher.
Durante
o regime militar, houve repressão interna nas igrejas presbiterianas
(do Brasil e Independente, ou seja, IPB e IPI) e nas igrejas da
Convenção Batista Brasileira. Alguns membros foram delatados e
entregues aos torturadores por seus próprios irmãos de fé.
Pastores se tornaram alunos da Escola Superior de Guerra, como foram
os casos de Nílson do Amaral Fanini, da convenção batista citada,
e Firmino da Anunciação Gouveia presidente da Assembléia de Deus
no Pará, para ficar em apenas dois exemplos, dentre muitos que
constam nos arquivos da ESG e das ADESG. Em dissertação de mestrado
foram registrados alguns fatos que indicaram a convivência amistosa
da Assembléia com o regime.
A
conquista do poder pelos militares foi festejada pela Assembléia de
Deus como manifestação da providência de Deus, para evitar que o
Brasil caísse nas garras do comunismo, comparado a um monstro que
subjugava 900 milhões de pessoas no mundo, segundo o jornal
Estandarte, de março-abril de 1964. Enquanto a Assembléia de
Deus adquiria visibilidade e se credenciava como organização
confiável para os militares no poder, as duas regionais da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na Amazônia eram
motivos de preocupação para essas autoridades castrenses, em razão
das posturas críticas assumidas pelos bispos, diante do regime
autoritário. A partir da gestão do Coronel Jarbas Passarinho no
Ministério da Educação, a Assembléia de Deus voltou a receber
subvenção do Estado, destinada à construção do seu instituto
teológico. No período de 1970 a 1974, foram US$ 28,035.00 de
doações dessa fonte, conforme atas administrativas da Igreja, do
mesmo período. Com o trabalho do deputado estadual Antônio Teixeira
e do federal Gabriel Hermes Filho, o Seminário Teológico da
Assembléia de Deus, em Belém, foi considerado de utilidade pública,
obtendo, assim, isenção de impostos. Enquanto a igreja recebia
essas benesses e verbas do Estado, o jornal Estandarte, de fevereiro
de 1970, verberava um editorial contra os pastores que se engajassem
na política. Em 1982, foi a vez da Superintendência para o
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) ajudar o Abrigo de Idosos
“Etelvina Bloise”, com a quantia de US$ 2,913.00, a pedido do
então senador Jarbas Passarinho. Em 1985, durante quatro meses, o
pastor Firmino Gouveia participou de um curso na Escola Superior de
Guerra, juntamente com outros líderes nacionais de denominações
evangélicas brasileiras.
Algumas
denominações tradicionais realizaram “limpezas” nos quadros
docentes de suas instituições formadoras de pastores e, em
situações extremas, decidiram fechar as portas das próprias
instituições. Conforme relata Santos:As
intervenções nas instituições teológicas funcionaram para
expurgar lideranças que passaram a ser vistas como semeadoras de
idéias modernistas, ecumênicas e comunistas. Foram também um meio
de tornar seus ensinos afeitos aos interesses dos novos dirigentes
denominacionais alinhados ao regime instaurado. A perseguição, a
censura e o cerceamento da liberdade dos artistas e intelectuais,
promovidos pelo regime ditatorial, tiveram seu equivalente nas
instituições religiosas por iniciativa das ‘novas’ cúpulas de
dirigentes eclesiásticos concordantes com o poder.
A
tradição liberal de governo interno dessas igrejas do
protestantismo histórico, que, a rigor, não era tão cultivada no
dia a dia, ficou mais fragilizada, ao incorporar práticas
autoritárias do regime. Jornais denominacionais ampliaram a censura
ideológica que já praticavam, houve concentração de poder em
lideranças intolerantes, além dos já citados episódios de
fechamento de seminários e delação de líderes para os aparelhos
de repressão. A coisa funcionou como se houvesse um caldo de cultura
autoritário à espera de que se manifestasse um regime de mesma
natureza para que fosse instaurada a intolerância, sem
constrangimento e de modo ostensivo, nessas igrejas.
No
sentido quantitativo, o regime fez bem a esse segmento religioso. Em
1970, os evangélicos totalizavam 4.833.106 de pessoas, ou 5,2 % da
população brasileira. Em 1980, eram 7.885.650, correspondendo a 6,6
% do total, e em 1991, somavam 13.157.094, ou seja, 9,0 % da
população. No caso dos pentecostais, o censo demográfico somente
passou a dar tratamento específico a partir de 1980, quando foram
registrados 3.863.320, portanto 3,2 % da população. Em 1991, eles
alcançaram a marca de 8.768.929, equivalendo a 6,0 % do total de
habitantes do País.
Pode-se afirmar que o campo religioso
evangélico passou por mudanças irreversíveis ao conviver
pacificamente com o regime militar. Santos considera que:A
visibilidade numérica e a presença mais evidente na paisagem das
cidades, a utilização de meios de comunicação como televisão e
rádio, o potencial de votos nas eleições, a presença de políticos
evangélicos nas instâncias do poder político, a força
institucional das denominações e a ampliação de seus patrimônios
– tudo isso produziu posições outrora não adotadas por parte dos
evangélicos.”
---Fonte:
Saulo
de Tarso Cerqueira Baptista: “CULTURA
POLÍTICA BRASILEIRA, PRÁTICAS PENTECOSTAIS E NEOPENTECOSTAIS:
A presença da Assembléia de Deus e da Igreja Universal do Reino de
Deus no Congresso Nacional 1999-2006”.
(Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Religião, como requisito para
obtenção do grau de Doutor. Orientador: Professor Doutor Leonildo
Silveira Campos). São Bernardo do Campo, 2007.
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